valter Hugo mãe foi o poeta convidado, ontem, pelas 22h00, no Café-Tetro do TCA (Teatro do Campo Alegre), no Porto. “Facínoras” foi o título, eleito por valter, para esta sessão – esgotadíssima, aliás –, onde fomos mimados com a sua poesia. O conteúdo, de alguns dos textos, do seu mais recente trabalho, bruno, – livro de poesia, editado apenas em Espanha –, ganhou vida nas vozes de Isaque Ferreira, Pedro Lamares e Adolfo Luxúria Canibal.
Mas, a riqueza do momento tomou particular sentido quando valter assumiu, para nosso regozijo, o comando de alguns textos e, num risco calculado, abraçou-os com audácia e deu-lhes som e melodia, num registo partilhado pela música alternativa acompanhado por António Rafael (teclas) e Miguel Pedro (percussão) – músicos da banda Mão Morta –, e ainda por Henrique Fernandes (contrabaixo).
facínoras
eu e o bruno somos dois
facínoras e queremos ser animais selvagens e
ferrar sem piedade, eu e o bruno
só somos diferentes ligeiramente,
por isso julgamos o mesmo do
mundo e estamos dispostos a
irritar as regras antigas do desafio
biológico. temos corpos nano-aperfeiçoados,
delicados para as vistas, artilhados para a,
demanda das austeras necessidades
da contemporalidade. e somos do
mais contemporâneo que há. sabemos
muito sobre o essencial de cada coisa, que
é sempre o mesmo, e ganhamos facilmente
por atentarmos apenas no essencial. queremos
ser animais exactos, deslumbrantes, cor-de-rosa ou
laranja, talvez hipopótamos com asas na
cabeça ou gnus sorrindo, mas sólidos, pesados
sobre a terra como sobre as ideias mais extensas,
a persegui-las obstinadamente. para dois
facínoras como nós, todas as coisas parecem
largamente aquém da imaginação. andamos
preocupados com o aquecimento global do
planeta e sabemos o que dizem sobre
a morte de três quartos da população
mundial nos próximos cinquenta anos, mas
isso pouco importa, parecemos sozinhos de
todo o modo, solteiros, sem ninguém, mas isso
pouco importa, e se pudéssemos, correríamos
à dentada três quartos da população mundial
para os calabouços do inferno, sem pretexto
climatérico, nem pudor perante as criancinhas,
as mulheres ou os velhinhos, era corrê-los a
todos até que restassem apenas as
pessoas seduzidas com subir às arvores para
incentivarem os frutos a nascerem e as que
colocam as mãos no chão sem
medo de criarem raízes. eu e o bruno
olhamos para as paisagens como dois
antipáticos implacáveis. criticamos cada
coisa até se cansarem da nossa conversa e
rogamos pragas a quem exasperado nos
abandona. dizemos, vão-se embora, enfiem-se
debaixo dos lençóis e criem penas de avestruz na
corola do buraco do cu. sentamo-nos
ao pé das águas dos rios escuros e
ferramos a quem nos pergunta se vamos
pescar. arrancamos braços inteiros, por vezes,
à força dos dentes, o bruno mais, que tem uma
dentição branca superiormente saudável e pode
desferir golpes de maior violência e até com
encantadora precisão.
a mariana costa desenha os animais que
queremos ser porque entendeu tudo
sobre o recôndito segredo do universo.
nos seus olhos incrivelmente azuis
reflecte melhor do que o céu as
proféticas aventuras do humano. eu
vou aproximar o meu corpo gravemente ao
dela e sei que do choque espiritual me
nascerá o exército de filhos com que
infestaremos os espaços de uma beleza
pura, desorganizada por ser genuína, intensa,
capaz de explicar aos ímpios a necessidade de
seguirem para o inferno e permitirem a sobrevivência
de todos os peixes. e eles seguirão por seu
próprio pé e iniciativa e deixarão caminho
para que subsistam apenas corações férteis e
desavergonhados no exercício do amor. eu e
o bruno corremos atrás da mariana como
cães obedientes e vamos latir ou uivar em cada
pôr-do-sol para receber os dentes nos sonhos de
todas as noites. é assim o amor,
uma entrega sem hesitação perante o acentuado
do abismo
e salvaremos o mundo com estas convicções nada
pacíficas. porque daqui a pouco tempo perderemos
dois terços da população só pela inércia e
antes disso é preciso preparar todos os
animais para a travessia até um tempo melhor
a boca dos insectos já nos beija, rapidamente
inteligente e respiradora, e é assim o
amor, sem limites perante a vida
valter Hugo mãe, in bruno