Sunday, November 18, 2007

Por me apetecer



Hoje, "Luz" de Pedro Abrunhosa. Por me apetecer.

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A cada não que dizes
(A Rami al-Dura, de 12 anos, morto em 2000 pelas balas do ódio na Faixa de Gaza)
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Lento,
Eu vi morrer o tempo,
Morto por fora e por dentro,
Como um pai enganado,
Um filho roubado,
Uma mão de soldado, um pecado,
Um cálice, um príncipe,
E num salto de lince,
Um fim que está perto,
Um quarto deserto,
Dois tiros no escuro, um peito feito no muro
E o rosto já frio, o som da morte no cio,
O passo a compasso
Das botas cardadas,
Espadas à espera,
O gume,
O lume da fera.
E ninguém percebeu que o mundo inteiro sou eu.
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Longe,
Um mar que se rasga e me foge,
Uma dor que, por mais que se aloje, não vale o aço da bala
Coração que me embala, que estala, que embala no medo,
Um dédalo, um dedo,
Um gatilho já preso,
Um rastilho acesso, um fogo às cores pelo céu,
Desenhos loucos no breu,
Pintura pura a canhão,
Talvez vinte homens não cheguem,
Talvez aqueles me levem,
Talvez os outros se lembrem,
Que são homens como os que fogem
E nenhum Deus é maior,
Num ódio feito de dor,
E ninguém reparou que o mundo inteiro parou.
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A cada não que dizes,
Abre-se um lugar no céu.
A cada não que dizes,
Abre-se um lugar no céu.
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Fracos,
Como farrapos na cama,
Orgulho feito de lama, e o verbo ser a partir.
Palavras presas na alma, ruas de vento e vivalma,
Um límpido tiro, um suspenso suspiro,
Pietá nas notícias,
Gravatas impunes negando as sevícias
Vozes de ferro, de fogo, de fome, de fuga, de facas,
E as rugas pobres, já fracas,
Um poço morto de sede,
Graffitis numa parede,
E ninguém percebeu, que o mundo inteiro sou eu.
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Outros,
Loucos, perdidos, sentidos certeiros,
Crianças feitas guerreiros,
A quem foi roubado o perdão,
Dois braços cheios de pão,
Napalm na palma da mão,
Um fósforo fátuo,
Nos jornais o retrato
De um estilhaço, um abraço,
Um pedaço de espaço
De uma pátria sem chão.
Uma pétala pródiga, um remorso confesso,
Talvez a dor no regresso,
Talvez um dia o inverso,
Mas isso já eu não peço,
O mundo inteiro a fugir,
O mundo inteiro a pedir.
Que se oiça alto o teu não.
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A cada não que dizes,
Abre-se um lugar no céu.
A cada não que dizes,
Abre-se um lugar no céu.
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Lento,
Longe,
Fracos,
Outros.





Monday, November 12, 2007

Deveríamos viver nesse caminho

Pedro Cavadas, cirurgião, efectivou um transplante bilateral de mãos - o primeiro em todo o mundo -, numa mulher, Alba, o seu nome. Este gesto atirou Cavadas, de 42 anos, para a literatura científica internacional. Com residência em Valência, engrandece a cirurgia, de hoje - a mais avançada -, e move-se numa área, ainda, polémica, a cirurgia de transplantes de tecido composto. Pedro Cavadas prepara-se agora para um transplante de cara, o quarto a ser realizado a nível mundial. Em França executaram-se dois, um em Lyon e outro em Paris, este último efectuou-se há muito pouco tempo, um caso muito bem executado, segundo Cavadas; o terceiro transplante decorreu na China, sobre este existem, ainda, poucos dados consistentes. Contudo, são transplantes parciais, pois parece que ainda ninguém se atreveu a fazê-los na sua totalidade.
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Trata-se de um percurso aplicado, brilhante, atento e sonoro o deste jovem médico, com um dia-a-dia inacessível, ou não integrasse um dos sete grupos, a nível mundial, na cirurgia de transplantes de tecido composto (CTA), chega a fazer 1300 operações por ano na sua clínica. "Nunca fiz cosmética, é uma das coisas de que me faço gala. Não gosto de futebol, não fumo e não faço cirurgia cosmética; são as minhas três conquistas", clarifica Cavadas. Mas, o que destaca Pedro Cavadas, para um plano superior, onde muito poucos chegam, é a sua entrega à causa humanitária. Hoje opera mutilações no Quénia e no Uganda, onde tem de levar literalmente tudo, a maioria dos hospitais apresentam-se barracas, com bichos a andar pelo chão e onde as moscas, simplesmente, fixaram residência. Na periodicidade de uma a duas vezes por ano, porque as viagens da sua equipa ficam muito dispendiosas, Cavadas faz cirurgia reconstrutiva gratuita em crianças e adultos no continente africano. Por vezes, chega a trazer crianças para Espanha, bem como alguns dos seus familiares e hospeda-os na sua casa, em Valência, durante meses, enquanto recuperam do pós-operatório.
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São muitas as histórias de vida, vividas, que fizeram deste homem uma pessoa renovada. "Existe um antes e um depois de África", sublinha Cavadas. Acreditamos. Acreditamos todos!
A sua causa passa pela ética da espécie na ajuda ao próximo. "Podemos viver de costas voltadas para a nossa espécie, mas há coisas que não mudam com as culturas, as religiões ou as épocas históricas, que é um ser humano ajudar o outro".
Chega a ser comovente a grandeza da sua integridade e altruísmo. Cavadas abdicou do supérfluo, há anos atrás coleccionou carros de luxo, vendeu tudo, para se concentrar no essencial: "Um ser humano que estende a mão a outro ser humano porque acredita fazer o que deve", defende que este caminho, por si eleito, é um trilho ético e honesto, ontem, hoje e dentro de cem anos. Quanto às filhas, duas meninas chinesas e referindo-se a África, "Adorava que um dia fossem comigo, para que comparem e relativizem, mas ainda são pequeninas".
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São valores que permanecem na natureza humana, disponíveis a todos. Uns aproveitam.
Valores que atravessam os tempos e nos unem no mesmo caminho, com o mesmo sentido.
In Jornal Expresso, 27 de Outubro de 2007, Revista Única

Friday, November 9, 2007

Novembro


Chegou com os olhos cobertos de luz e afecto. Olhou com um olhar franco e aberto, deu-me a sensação de que, pela primeira vez na vida, o tinha visto integralmente.
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Novembro, sempre!