Saturday, July 11, 2009

Lá longe, há diferenças que não fazem diferença!



«Eu sei que isto parece uma frase feita, mas tinha a sensação nítida de que haviam passado muito mais de que três noites e os quatro dias que nos haviam trazido até ali. Parecia-me que já tínhamos vivido um bocado de vida imenso e tão forte que era só nosso e nós mesmo não falávamos disso, mas sentíamo-lo em silêncio: era como se o segredo que guardávamos fosse a própria partilha dessa sensação. E que qualquer frase, qualquer palavra, se arriscaria a quebrar esse sortilégio. Sentia-me tão íntimo e tão próximo dela, que tive necessidade de o sentir também fisicamente.»

«A maior parte do tempo, porém, o que nós partilhávamos era o silêncio. E isso eu aprendi contigo, porque não sabia. Para mim, o silêncio era sinal de distância, de mal-estar, de desentendimento. Ao princípio, quando ficávamos calados muito tempo, eu sentia-me inquieta, desconfortável, e começava a falar só para afastar esse anjo mau que estava a passar entre nós.
Um dia tu disseste-me:
- Cláudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio.»

«Anos mais tarde, já estava doente, voltei a lembrar-me dessa nossa conversa. Tinha acabado de te escrever uma carta – mais uma, talvez a terceira – que nunca te cheguei a mandar e que destruí depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me de que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr a carta no correio. Porque era tão sentido e tão magoado, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acreditei que tu não podias deixar de me ouvir.»

«Queria que me ouvisses e que falasses comigo. Mas não te queria ver, não queria que me visses. Assim.»

«Sim, de vez em quando falávamos ao telefone. Tu telefonavas-me para o trabalho, a telefonista anunciava o teu nome e passava-me a chamada, e eu fechava os olhos por um instante antes de atender, como se assim pudesse ver-te outra vez lá longe, onde juram que as grandes dunas brancas que nos rodeiam se movem todos os Verões e onde as estrelas à noite eram tão próximas que parecia que se estendêssemos a mão conseguiríamos tocar-lhes e eu dizia-te, à porta da tenda:
- Xiu, ouve o ruído das estrelas!»

«Depois disso, voltei onze vezes ao Sahara. Nunca como contigo, nunca tão fundo, tão longe, tão perdidamente. Mas voltei, porque o deserto tornou-se quase um vício e a minha íntima religião, o único divino a que prestava contas e onde me reencontrava. E, de cada vez que voltei, pensei em ti e pensei como seria bom, incrivelmente bom, voltar contigo. Nessas alturas, como nas outras, eu repetia a mim mesmo: “Não há regresso. Há viagens sem regresso nem repetição.”»

«Quando tudo era bonito de mais ou duro de mais, tu ficavas calada a olhar silenciosamente. Falámos sobre isso uma vez, e eu disse-te que a vida me tinha ensinado que fácil era o ruído, as conversas sem sentido, a banalidade das palavras ditas sem necessidade alguma. De nós os dois, tu eras, sem dúvida alguma, a mais calma, a mais feliz tranquilamente. A mais atenta, a mais disponível para o vazio e o silêncio. Ah, não te rias, eu observei-te bem, sei do que falo!»

Miguel Sousa Tavares, No teu deserto
(Quase Romance)

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