Monday, November 15, 2010

Tinha de o fazer


Tinha de o fazer. Seria imperdoável não partilhar, aqui, este momento.
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Poderá encontrar, na íntegra, a entrevista de Ricardo Araújo Pereira a António Lobo Antunes na Revista Visão de 28 de Outubro de 2010.
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"Em criança, escrevia com um livro aberto à sua frente, para enganar um adulto que o surpreendesse quando devia estar a estudar.
Hoje, continua a escrever com um livro aberto diante de si, como se a escrita fosse ainda uma espécie de transgressão infantil."
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"Há uma história engraçada do Walt Whitman. Ele estava num velório e havia uma criança ao pé dele. Agarrou na miúda, mostrou-lhe o caixão e perguntou:«Tu percebes? Eu também não.» É uma incompreensão perante a morte... Eu nunca tinha visto a morte. Vi esse enterro de criança, em Nelas, e não voltei a vê-la: eu era o filho mais velho de dois filhos mais velhos, os meus avós tinham 40 anos. Só voltei a vê-la quando entrei na faculdade de Medicina, no teatro anatómico, tinha acabado de fazer 17 anos. E pensei: não sou capaz de ver, não sou capaz de olhar. É uma total incompreensão de mim."
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"Nunca ninguém morre nos meus livros, passam é a viver de maneira diferente. O meu pai, depois de morrer, continuou a mudar, a existir dentro de mim. E continuámos a falar. Até que chega uma altura em que estamos em paz e o nosso diálogo é de tal maneira perfeito que nem sequer necessitamos de palavras. E depois sentimos que estamos a viver também por eles. Eu estou a viver pelas pessoas de quem gostei e que, para mim, continuam vivas. Mas, ao mesmo tempo, quando escrevemos, estamos tão ocupados a resolver os problemas técnicos que não sabemos muito bem para onde estamos a ir."
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"Há uma coisa muito mais importante do que o talento: é a bondade. E como, para mim, o defeito mais grave é a ingratidão, a única coisa que eu sempre achei que tinha era a capacidade de escrever coisas em que pudesse dar às pessoas de quem gostava aquilo que não era capaz de lhes dar. Por pudor, por vergonha, por cobardia, talvez, por estupidez. Está a ver? Tomem lá, isto sou eu. Tomem. É para vocês. É um presente que eu fiz. Quando um dos meus irmãos era pequenino, o meu pai fez anos e o presente que o miúdo lhe deu foi uma torrada embrulhada num guardanapo de papel. Nunca vi o meu pai tão comovido. Uma vez, uma das minhas filhas, quado era pequenina, deu-me 25 tostões, nos meus anos. Foi o melhor presente que me deram. Estou a dizer isto e estou a comover-me porque [pausa] nunca me deram tanto dinheiro."
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" Qualquer bom escritor está a ensinar-nos a lê-lo. Por exemplo, eu aprendi a ler o Conrad com o Conrad. Ao princípio, não percebia nada, parecia-me uma confusão. O Gogol. Aprendi a lê-los com eles. O Dylan Thomas, que, à primeira vista, parece uma catadupa de imagens sem sentido. E não é. É muito mais que isso, somos nós todos. E então, a minha gratidão para com os artistas é imensa."
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"É quando o livro deixa de ser livro para se tornar nós - nós, leitores. Acontece-me tanto. Às vezes a gente descobre um bom escritor. Descobri, há relativamente pouco tempo, o Cormac McCarthy. Muito bom. O Kostolányi, o húngaro. Muito bom. Eles escreveram só para mim. Os outros exemplares trazem coisas diferentes. Eu não gosto de emprestar livros, porque o meu exemplar é que é. Como acho que o Monte dos Vendavais foi escrito só para mim. Ela está a falar comigo, ele conhece-me. Ela conhece-me."
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"Eu lia Redol e não gostava nada. E um dia percebi. Ele (o escritor referia-se a José Cardoso Pires) mostrou-me uma carta que o Redol, que estava a morrer no Santa Maria quando eu era estagiário, lhe escreveu. Uma carta em papel timbrado de um hotel O timbre era uma coisa muito pomposa. E o Redol despede-se. Zé, nunca mais te vou ver, fui muito teu amigo, e tal... P.S.: Já viste papel de carta com mais mania? O Zé disse:«Foi a única vez que eu chorei como uma criança.» E o Zé, quando chega a altura de De Profundis, escreveu aquele livro pequeno porque já não era capaz de o escrever grande."
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"A mim, o que me deu vontade de escrever foram o Almanaque Bertrand, o Pato Donald, o Mandrake... Foi por causa disso que eu comecei a escrever. Estava sozinho, escrevia, e depois é um milagre, para uma criança, que as palavras, postas à frente umas das outras, façam sentido. Até que descobrimos que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal. E, aí, pelos 20 anos, descobre-se que, entre escrever bem e uma obra-prima, há uma diferença ainda maior, e que só vale a pena escrever para ser o melhor. Para fazer aquilo que nunca foi dito. Como é que eu hei-de explicar? Eu sinto-me um elo de uma corrente que começou muito antes e acabará muito depois. E quem escreve? Quando escrevemos, quem é que escreve? Quem é que, através da nossa mão, se exprime? Quem? Não sei. A gente só tem perguntas, e quando encontra respostas elas transformam-se em novas perguntas."
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"Recebi um telefonema de França. «Está? Chamo-me Jean Daniel.» Jean Daniel era um ídolo da minha juventude. Diretor do Nouvel Observateur. Foi através da crítica literária do Nouvel Observateur que eu vim a saber do boom sul-americano, que estava a acontecer nessa altura. Portanto, era um homem a quem eu devia muito. E o senhor telefona-me e diz:«Eu tenho 89 anos e gostava de o conhecer antes de morrer.» Isto é tudo tão comovente, não é? Tenho tido muita sorte. E depois são os amigos desconhecidos. No outro dia, estava à procura de uma rua até que entrei num cafezinho pequeno para perguntar. Dois homens levantaram-se e levaram-me lá. O que isto vale... Diga lá se uma pessoa merece isto... Não merece. Tinham lido os livros, é extraordinário."
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"É preciso acreditar nas pessoas. As pessoas são tão mais ricas do que elas mesmas pensam."
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"...Eu poderia pagar menos IRS se invocasse o cancro, e fui incapaz de o fazer. Tinha vergonha. Era uma inferioridade minha. Só pensava: que diferente que isto é da guerra. Porque, na guerra, há uma coisa que está fora de mim e eu posso dar-lhe um tiro. Aqui, não posso fazer nada. Lembro-me de, quando estava a fazer radioterapia, dizer:«Morre, morre, filho da puta.» Insultava o cancro.[Risos.]"
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"Eu, infelizmente, não sou uma pessoa feliz, nem alegre. Tenho dois ou três amigos que são, e tenho uma inveja imensa deles. Primeiro, porque pertenço à classe dos eternos culpabilizados. Culpado de tudo. E, depois, às vezes, penso: porque é que a gente sofre tanto? E sofrer por nadas."
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Ó Ricardo, não sei, ainda não morri. Mas a gente não pode levar a morte a sério. Há que a ceitar a morte como a impostora que é. Uma vez perguntaram ao Hemingway o que ele achava da morte, e ele disse: «Outra puta.» E venceu-a. Ele dizia: um homem pode ser destruído, mas não pode ser vencido. [Pausa.] Tinha razão, não tinha?"

4 comments:

Anna said...

Ainda bem que o fizeste, Cris:)
Li e reli, li e reli, li e reli... e continuo a achar que o Lobo Antunes é grande, dos muito grandes, daqueles que escrevm coisas imortais que nos fazem acreditar que há palavras que só eles sabem dizer.

Um beijo

Liou Duvinini said...

Interesante...

sentidos de coimbra said...

É bem verdade Paulinha e Lobo Antunes tem a particularidade de escrever para mim.

Bjinho

sentidos de coimbra said...

Obrigada pela visita Liou, volte sempre.